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O Som da Fé: A Tradição dos Carros de Boi em Goiás

A tradição dos carros de boi em Goiás é mais do que uma lembrança do passado: é uma herança viva que atravessa gerações. Do ronco das rodas de madeira às promessas cumpridas nas estradas de terra, cada romaria renova a fé e reafirma a identidade cultural do povo goiano. Preservar essa tradição é manter acesa a chama da memória e da devoção que fazem parte da alma do Brasil.




Fotografia da Romaria dos Carros de Boi em Trindade (2014), por Luiz Roberto Botosso Júnior – Acervo IPHAN.
Fotografia da Romaria dos Carros de Boi em Trindade (2014), por Luiz Roberto Botosso Júnior – Acervo IPHAN.


Em Goiás, poucas tradições carregam tanto simbolismo quanto os carros de boi. Mais do que veículos de madeira puxados por animais, eles são a própria tradução da fé sertaneja, da resistência cultural e da ligação profunda entre o homem, a terra e o sagrado. Quem já presenciou a Romaria de Trindade, durante a Festa do Divino Pai Eterno, sabe que o desfile de carros de boi é um espetáculo emocionante, onde devoção e cultura caminham lado a lado.


Raízes de uma devoção


Tudo começou por volta de 1840, quando um casal de lavradores encontrou um medalhão com a imagem da Santíssima Trindade, dando origem à devoção ao Divino Pai Eterno. Naquele tempo, os carros de boi eram o principal meio de transporte no interior. Logo, muitos devotos passaram a usá-los para peregrinar até Trindade, transformando uma necessidade prática em ato de fé.


Desde então, geração após geração mantém viva a romaria, onde cada quilômetro percorrido é carregado de promessas, agradecimentos e esperança.


O ronco que emociona


Um detalhe curioso chama a atenção de qualquer visitante: as rodas dos carros de boi não recebem graxa. Isso não é descuido, é tradição. O atrito da madeira produz um som único, conhecido como o “ronco do carro de boi”, que se tornou a trilha sonora da romaria. Para os romeiros, esse barulho é um cântico sagrado, como se a própria fé ecoasse pelo cerrado.


Personagens e histórias


A tradição não seria a mesma sem os grandes protagonistas: os carreiros. Entre eles, famílias como os Bariani, de Goiânia, ganharam destaque. Há décadas, eles organizam enormes comitivas que atravessam estradas de terra por dias, reunindo várias gerações em torno da mesma devoção.


Muitos outros romeiros também marcam a história com sacrifícios e promessas. Há relatos de fazendeiros que venderam parte da produção para garantir bois e carroças para cumprir a fé. Alguns peregrinos seguem descalços, outros dormem junto aos animais, reafirmando a simplicidade e a força dessa tradição.


Folclore e celebração


O carro de boi não está presente apenas na festa religiosa. Ele também vive no folclore goiano. Cantigas populares e festas do interior retratam o carreiro, exaltando sua coragem e humildade. Em municípios como Pirenópolis e Goiás Velho, o som das rodas de madeira já inspirou versos, músicas e histórias contadas à beira do fogão a lenha.


Além disso, muitos carros são enfeitados com flores, bandeirinhas e imagens religiosas. Algumas comitivas improvisam até cozinhas durante o trajeto, transformando a viagem em uma grande festa comunitária — onde se compartilha comida, fé e companheirismo.


Patrimônio da identidade goiana


A Romaria de Carros de Boi de Trindade foi reconhecida como Patrimônio Cultural Brasileiro pelo IPHAN, o que reforça sua importância histórica e simbólica. Mais do que manter viva uma tradição, o evento fortalece a identidade cultural de Goiás, mostrando que a fé pode se reinventar sem perder suas raízes.


E assim, a cada ano, quando os bois avançam lentamente pelas estradas, conduzindo os carros que rangem sob o peso da devoção, repete-se um ritual que emociona. O ronco da madeira, o brilho nos olhos dos carreiros e a fé dos romeiros contam uma história que não cabe apenas nos livros: ela vive na poeira das estradas, no coração do povo e na cultura de um estado inteiro.

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