A História Viva do Congo de Catalão e Suas Origens Ancestrais
- Simão Pereira Aguiar

- 26 de jul.
- 7 min de leitura
Atualizado: 26 de jul.
A Congada de Catalão não é apenas uma celebração: é um elo entre passado e presente, fé e resistência, música e memória. Nascida de uma promessa não cumprida, transformada pela coragem do povo e sustentada pelas mãos e pelos passos de gerações, a festa ecoa a ancestralidade afro-brasileira em forma de ritmo, cor e devoção. Cada terno, cada toque de caixa e cada ladainha carregam histórias que não cabem nos livros — mas que vivem nas ruas, nas roupas coloridas e na fé que move a cidade.

O Congo no Brasil: Tradição, Fé e Resistência que Ecoam pelos Séculos
Muito mais do que uma manifestação folclórica, o Congo — também conhecido como Congada — é uma expressão viva da memória ancestral afro-brasileira. Surgido no período colonial, esse festejo é herança dos povos trazidos da África, principalmente das regiões onde hoje estão Congo, Angola e Moçambique.
No Brasil, especialmente em estados como Goiás, Minas Gerais, São Paulo e Bahia, o Congo floresceu como forma de manter vivas as raízes culturais africanas em meio à dura realidade da escravidão. Ao longo do tempo, foi se moldando à religiosidade católica imposta pelos colonizadores, resultando em um sincretismo singular: a celebração da fé cristã, com destaque para São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, entrelaçada às tradições africanas de música, dança, ritmo e espiritualidade.
Sabemos que, por trás da beleza do festejo, há também camadas profundas de resistência. Durante séculos, enquanto se curvavam diante dos santos, os africanos e seus descendentes também erguiam silenciosamente seus próprios símbolos, escondidos sob mantos sagrados e passos ritmados.
A Origem Da Congada em Catalão: Fé, Promessa e Resistência
A origem da Congada em Catalão é contada por diversas vozes, cada uma com nuances próprias. No entanto, todas convergem em um ponto essencial: a forte influência da tradição mineira, especialmente vinda da região de Araxá.
Entre os relatos mais respeitados, está o que envolve Pedro Netto Carneiro Leão, um homem que deixou Minas Gerais rumo ao interior goiano em tempos difíceis, guiado pela esperança de prosperar como fazendeiro. No caminho, levava consigo uma promessa feita à Nossa Senhora do Rosário, santa de sua devoção. Se alcançasse sucesso, retribuiria promovendo uma grande celebração em sua homenagem. A promessa parecia ter sido ouvida. Pedro prosperou, tornou-se dono de terras, de gado e, como era comum à época, também de muitos escravizados. Mas não cumprindo sua palavra, adoeceu gravemente. Temendo não sobreviver, confiou ao filho, Augusto Netto Carneiro, a missão de honrar o compromisso com a santa.
Augusto levou o pedido a sério. Organizou um grupo de negros e os enviou de volta a Araxá, para que aprendessem as danças e rituais da Congada. Quando retornaram, foram reunidos aos trabalhadores das fazendas locais e, juntos, se prepararam para a maior celebração já vista em Catalão.
Mas havia um obstáculo no caminho. O então vigário da cidade, padre Joaquim Manoel de Souza, reprovava a festa, que via como expressão de religiosidade popular misturada a elementos africanos – o que ele considerava heresia. Para impedir o evento, trancou a igreja e sumiu com a chave.
Determinados a não desistir, os organizadores buscaram uma solução. Chamaram o rezador popular Antônio Romualdo Fernandes, mais conhecido como “Antônio Guloso”, que passou a conduzir novenas e ladainhas. Diante do impasse, tomaram uma atitude ousada: arrombaram a igreja e deram início à celebração, que se tornaria uma das mais importantes manifestações culturais e religiosas do Centro-Oeste brasileiro.
Assim nasceu, entre promessas, fé e resistência, a Congada de Catalão — uma festa que mistura devoção, cultura afro-brasileira, memória e orgulho.
A Congada de Catalão: Tradição, Resistência e Fé Afro-Goiana
Segundo Leonardo Costa Bueno, presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, a origem da congada em Catalão remonta ao período escravocrata. Os negros, impedidos de expressar livremente suas crenças e costumes nas fazendas do município de Ouvidor, encontravam na Festa do Rosário uma oportunidade de celebrar sua fé, ancestralidade e cultura. Saíam das lavouras trazendo consigo não apenas os mantimentos que vendiam para garantir sua subsistência, mas também os cantos, os tambores e as danças que homenageavam seus santos de devoção, principalmente Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.
Essa tradição migrou do campo para a cidade, como aponta a pesquisadora Carmem Lúcia Costa, da Universidade Federal de Goiás. Em seu estudo sobre a festa, ela destaca que os dançadores – ou “brincadores”, como são chamados – foram expulsos das zonas rurais com o avanço da urbanização, mas levaram consigo a fé e o espírito comunitário.
Assim nasceu a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, ponto de apoio, acolhimento e resistência para a comunidade negra de Catalão. De um modesto número de cinco ternos de congo registrados ainda em 1975, hoje a cidade abriga 21 grupos divididos entre congos, moçambiques, catupés, vilões e penachos.
A força da congada está em sua capacidade de se reinventar sem perder sua essência. A festa, que antes reunia apenas negros com fardas brancas, hoje é plural e inclui diferentes tons de pele, gerações e camadas sociais. Com o tempo, novos personagens foram incorporados – como as bandeirinhas –, enquanto outros se perderam no percurso. Instrumentos também mudaram: o tambor, símbolo das raízes africanas, deu lugar à caixa, refletindo influências culturais e adaptações urbanas.
Mesmo com essas transformações, a Congada de Catalão continua sendo uma das maiores do Brasil em número de participantes e ternos ativos. Metade da população local se envolve direta ou indiretamente na festa, que também atrai turistas, estudiosos e devotos de todo o país. Mais que uma celebração religiosa, ela é um manifesto de ancestralidade, fé e pertencimento.
A cada passo ritmado dos dançadores, a cada toque de caixa, ressoa a história de um povo que, mesmo diante da dor e da opressão, nunca deixou de celebrar a vida e louvar os seus santos. Catalão, com sua vibrante Congada, mantém viva uma das mais belas manifestações do patrimônio cultural afro-brasileiro.
Ternos e Tradição: A Diversidade Viva da Congada de Catalão
A Congada de Catalão, uma das maiores manifestações culturais e religiosas de Goiás, é composta por diferentes expressões chamadas de ternos. Cada terno carrega consigo não só um ritmo ou figurino, mas também a herança, os símbolos e a espiritualidade de um povo que resistiu, celebrou e criou caminhos de pertencimento. Dentre os vários tipos, os principais são o Congo, o Catupé, o Vilão, o Moçambique e o mais recente, o Mariarte.
Terno de Congo: A Batida que Ecoa no Coração da Festa
O terno de congo é o mais numeroso em Catalão. Ainda que sua origem local seja incerta, os primeiros registros aparecem na década de 1940. Hoje, são 12 grupos ativos, marcados por uma forte presença rítmica: as caixas — grandes tambores tocados com intensidade — lideram o som. Acompanhadas por viola, sanfona, pandeiro, reco-reco e chocalhos, elas criam uma atmosfera vibrante que conduz as danças e os cantos em coro alternado, onde uma fileira canta o verso e a outra responde.
Os ternos de congo são divididos em alas, com a frente guiada por um integrante conhecido como “guia”. Capitaneados por um líder com apito e bastão, esses grupos exigem habilidade na improvisação dos versos e uma coordenação precisa entre os dançadores. Há ainda os chamados marinheiros ou marujeiros, uma vertente mais ágil do congo, com batidas aceleradas e passos mais vivos.
Catupé: A Dança da Astúcia e da Devoção
O Catupé chegou a Catalão em 1953, pelas mãos de Antônio Miguel da Silva, e com ele nasceu o terno Catupé Cacunda de Nossa Senhora das Mercês, conhecido hoje como “catupé amarelo”. Essa forma de congado se espalhou e atualmente conta também com o catupé azul, em homenagem a São Benedito, e o branco, devoto de Nossa Senhora do Rosário.
Tradicionalmente alegre e repleto de simbolismos, o catupé é dançado ao som de caixas, tamborins e pandeiros — alguns deles feitos artesanalmente com canos de PVC, embora os mais antigos fossem construídos com cipó e couro natural. Os dançadores acompanham o capitão com passos que parecem "cutucar o chão com o ombro", origem popular da expressão catuca o pé com a cacunda. A presença da sanfona e os figurinos vibrantes reforçam o aspecto festivo do grupo.
Em 2003, surgiu o penacho, uma variação do catupé caracterizada pelo uso da manguara (vara de madeira) e cocares de penas, marcando a fusão de elementos afro-indígenas à celebração.
Vilão: A Coreografia da Luta
Inspirado nas festas mineiras, o primeiro terno de vilão surgiu em Catalão em 1954 com o grupo Santa Efigênia, criado por Joaquim Coelho. O vilão é facilmente reconhecido pelas manguaras de até dois metros enfeitadas com fitas, além dos facões de madeira usados para encenar antigas batalhas simbólicas dos tempos de escravidão. Dispostos em fileiras, os integrantes do vilão cruzam as varas ao som do apito do capitão e da batida da sanfona e das caixas. A performance é uma representação da resistência negra, ao mesmo tempo que homenageia Nossa Senhora do Rosário com cantos e movimentos sincronizados.
Moçambique: A Força que Guia a Coroa
Os ternos de Moçambique carregam consigo a missão mais sagrada da festa: escoltar a imagem de Nossa Senhora do Rosário durante a procissão. Seu ritmo é marcado, forte e solene, conduzido por caixas, chocalhos e patangongas — correias com guizos que ressoam com os passos dos dançadores.
Apesar de algumas transformações ao longo do tempo — como a substituição das tradicionais gungas por casquetes modernos e a mudança no uso dos quatro lenços rosa — o Moçambique ainda é um dos grupos mais respeitados. Sua função espiritual e simbólica mantém viva a essência da devoção afro-brasileira na festa.
Mariarte: As Vozes Femininas Entram em Cena
Durante décadas, as mulheres estiveram nos bastidores da festa: costurando fardas, cozinhando, organizando a parte religiosa. Mas em 2006, elas romperam essa barreira com a criação do Mariarte — o primeiro terno de congo composto apenas por mulheres. A estreia foi histórica, marcando uma virada na tradição e ampliando o protagonismo feminino dentro da congada.
O Mariarte carrega as cores da igualdade e do orgulho, mantendo a tradição rítmica do congo, mas com novas vozes e novas lideranças. É uma prova de que a tradição pode evoluir sem perder sua alma.
Mais que festa, um legado
Cada terno, com sua cor, instrumento, canto e história, compõe o mosaico da Congada de Catalão. Mais do que uma celebração, a festa é a reafirmação da cultura negra em Goiás. Ela fala de fé, mas também de resistência, transformação e comunidade. Os passos no asfalto de hoje carregam séculos de memória, reverberando no corpo e na alma de quem dança, canta — e jamais esquece.
Serviço
📍 Evento: Congada de Catalão
📅Quando: Todo mês de outubro, com ponto alto no segundo fim de semana
📌 Onde: Catalão – Goiás
🎭 Atividades: Cortejos, danças de ternos, missas, ladainhas, levantamento de mastro e celebrações religiosas em homenagem a São Benedito e Nossa Senhora do Rosário
🎼Participação: Grupos de Congos e Moçambiques locais e convidados, com forte presença das comunidades tradicionais






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