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O CINEMA INFANTIL BRASILEIRO E SEU MERCADO

por Iuri Moreno

A partir de um estudo histórico do cinema infantil brasileiro, analisaremos aspectos de mercado que apontam erros e acertos cometidos por esse nicho, e que ainda provocam uma discussão sobre quais caminhos essa produção pode seguir. Como metodologia, analisaremos duas produções distintas lançadas em 2017 nas salas de cinema do Brasil, os longas Lino – Uma Aventura de Sete Vidas e Detetives do Prédio Azul (D.P.A.) – O Filme, a fim de observar aspectos históricos e de distribuição que se relacionam a essas obras. Por fim apontaremos soluções para o desenvolvimento desse mercado.

INTRODUÇÃO


O cinema voltado ao público infantil no Brasil foi marcado por diversas produções vindas de um sucesso prévio da televisão, com poucos registros de produções originais ou autorais ocupando as salas de cinema de nosso país ao longo da história. A partir desse contexto, analisaremos duas produções, lançadas em 2017 nas salas de cinema, do ponto de vista mercadológico, são elas: “Detetives do Prédio Azul (D.P.A.) – O Filme” e “Lino – Uma Aventura de Sete Vidas”. A primeira, lançada a partir de uma série televisiva em live-action já de grande sucesso e exibida pelo canal Gloob, do Grupo Globo, e a segunda, uma animação original em 3D lançada pela produtora Start Anima e distribuída pela Fox Filmes do Brasil.

A série “D.P.A. – Detetives do Prédio Azul” foi lançada pelo Gloob em 2012 e desde então não deixou de ser exibida pelo canal, seu sucesso colocou o Gloob entre os líderes de audiência no segmento infantil e a série já caminha para a sua décima temporada em 2018. Devido a esse sucesso, o canal, em parceria com a Globo Filmes, optou por ocupar também as salas de cinema brasileiras em 2017, lançando o longa-metragem “D.P.A. – O Filme”, um dos objetos de análise deste artigo. Seu lançamento ocorreu no dia 13 de julho de 2017 em 361 salas e atingiu um público de 1.207.350 espectadores, ficando em terceiro lugar entre os títulos brasileiros exibidos no ano. Esse resultado de bilheteria pode ser comparado a estratégias utilizadas por filmes que exploraram figuras conhecidas do universo televisivo, como os Trapalhões e a Xuxa, que dominaram o cinema infantil brasileiro nas décadas de 70, 80 e 90.

Por outro lado, tivemos o longa-metragem de animação “Lino – Uma Aventura de Sete Vidas”, lançado pela tradicional e reconhecida produtora de animação Start Anima. O filme tem roteiro original, não contou com nenhum antecedente para auxiliar na divulgação do produto, e com isso ficamos com a pergunta: como atingir o público-alvo partindo de algo ainda desconhecido? Os produtores de Lino utilizaram algumas estratégias, como o cuidado extremo para se aproximar da tecnologia 3D utilizada pelas produtoras de animação hollywoodianas e a contratação de atores famosos para a gravação das vozes originais presentes no filme, como Selton Mello, Dira Paes e Paolla Oliveira, contudo não obtiveram o mesmo resultado de público do longa “D.P.A. – O Filme”. Lino estreou no dia 07 de setembro de 2017 em 445 salas e alcançou 314.292 espectadores, número fraco para um contexto geral do cinema brasileiro e para a força que tem um filme de nicho infantil/familiar, mas mediano para um produto sem antecedentes. Em 2000, por exemplo, o filme “Tainá – Uma Aventura na Amazônia”, que teve alguns antecedentes de premiações em festivais, e é destinado ao mesmo público-alvo de Lino, foi lançado em apenas 100 salas e atingiu 853.210 espectadores, três vezes a mais que o recente longa da Start Anima, o que mostra que Lino, que se posicionou desde o princípio como um filme comercial, não atingiu seu principal objetivo de conquistar o público brasileiro com a estratégia utilizada.

O objetivo desse artigo não é condenar uma estratégia ou outra utilizada para produção e distribuição de filmes infantis, e sim realizar estudos de casos de obras já lançadas, a fim de aprender com a nossa história e de buscar novos caminhos para o cinema infantil brasileiro. É possível um filme infantil original e com personalidade artística conquistar um sucesso comercial? Essa é a pergunta que buscaremos resposta e que motiva a execução deste trabalho. Na primeira etapa discorreremos sobre o contexto histórico desse nicho em questão, depois partiremos para os estudos de caso dos filmes apresentados e por fim, a conclusão, onde refletiremos sobre as análises realizadas. Todos os dados referentes aos espectadores dos filmes presentes neste artigo foram retirados do OCA – Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual, órgão ligado à ANCINE – Agência Nacional do Cinema.


CONTEXTO HISTÓRICO

Não podemos falar sobre o mercado de cinema infantil sem antes voltar no surgimento e evolução do mesmo a nível internacional. Desde o princípio, o cinema infantil consome uma grande carga de suas histórias da literatura e principalmente dos contos de fadas, Georges Méliès lançou filmes como Cinderela (1899), O Chapeuzinho Vermelho (1901) e outros que partiram de livros e não foi diferente tempos depois com os clássicos da Disney e outros realizadores, o que trouxe ganhos ao cinema, já que a literatura infantil é muito rica e bem fundamentada. Dentro das produções de Hollywood, que trouxe uma visão mercadológica para o cinema infantil, surgiu o cinema classificado como familiar, com filmes que pensavam não só na criança que iria às salas de exibição, mas também no adulto que a acompanha, então as narrativas passaram a conter elementos que agradavam os adultos e ao mesmo tempo não prejudicavam as crianças, e esse cuidado fez o cinema infantil ganhar força internacionalmente. No Brasil, a literatura infantil gerou importantes filmes do gênero, como O Saci (1953), Pluft, o fantasminha (1962), A Dança das Bruxas (1970), Meu pé de Laranja Lima (1970), O Picapau Amarelo (1973), O Cavalinho Azul (1985), O Menino Maluquinho (1995), entre outros, mas ainda é um número muito pequeno se comparado a toda uma produção nacional e ao mercado mundial.

De qualquer forma, com filmes vindos da literatura ou não, o certo é que Hollywood dominou e ainda domina o mercado de cinema infantil no Brasil e na maioria dos territórios mundiais. Títulos como Branca de Neve e os Sete Anões (1937), Pinóquio (1940), Peter Pan (1953), A Bela Adormecida (1959), Mogli – O Menino Lobo (1967), A História sem Fim (1984), Os Goonies (1985), Conta Comingo (1986), Querida, encolhi as crianças (1989), Esqueceram de mim (1990), Aladdin (1992), Beethoven (1992), Free Willy (1993), O jardim Secreto (1993), O Rei Leão (1994), Os Batutinhas (1994), Jumanji (1995), Matilda (1996), Toy Story (1998), Procurando Nemo (2003), Frozen (2013), entre outros, marcaram o imaginário de crianças de várias gerações no Brasil, mas por onde caminhava e ainda caminha o cinema infantil brasileiro enquanto isso?

Entre as produções infantis brasileiras, mais da metade estão relacionadas ao universo dos comediantes trapalhões e de figuras conhecidas da TV brasileira, como a Xuxa e a Angélica. Para se ter uma ideia da dimensão desses filmes, segundo os dados divulgados pelo OCA – Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual, dos 30 títulos brasileiros de maior bilheteria da história do cinema nacional, 15 são do universo dos Trapalhões e da Xuxa, o que comprova a força que esse nicho de filmes infantis/familiares tem, mas será que somente com o auxílio da TV é possível a conquista de grandes sucessos comerciais no cinema infantil brasileiro?

Ao longo da história houve algumas tentativas de lançamento de obras originais ou adaptadas de livros que não contaram com um precedente tão forte como o da televisão. O longa-metragem Tainá – Uma Aventura na Amazônia (2000), por exemplo, dirigido por Tânia Lamarca e Sérgio Bloch, seguiu uma carreira inicial em festivais de cinema e após algumas conquistas, como o prêmio de melhor filme no Festival do Rio e no Chicago International Children’s Film Festival, foi lançado nas salas de cinema, sendo o filme infantil de maior expressão dentre os que não vieram da televisão, com mais de 800 mil espectadores. Mas se comparado aos mais de 5 milhões de espectadores feitos pelo longa O Trapalhão nas Minas do Rei Salomão (1977) e os quase 3 milhões feitos por Xuxa e os Duendes (2001), lançado no ano seguinte de Tainá, percebemos claramente a grande influência da TV nas salas de cinema brasileiras.

Em análises recentes, o fenômeno se repete, os longas infantis Carrossel – O Filme (2015) e Carrossel 2 – O Sumiço de Maria Joaquina (2016), vindos de uma série homônima exibida pelo SBT, levaram mais de 2 milhões de espectadores às salas de cinema, enquanto filmes como Lino – Uma Aventura de Sete Vidas (2017), Colegas (2013), Minhocas (2013) e a refilmagem de Meu Pé de Laranja Lima (2013), levaram menos de 300 mil cada um. Os filmes infantis sem antecedentes televisivos devem olhar com mais atenção ao público que estão lidando, falta um planejamento mais adequado no momento do desenvolvimento desses projetos e uma boa estratégia de distribuição, existe um público disposto a assisti-los, só não se encontrou ainda o caminho ideal para atingi-lo com precisão, de forma que se alcance os números expressivos vindos dos produtos da televisão.



LINO – UMA AVENTURA SEM SOBREVIDA

Através de um estudo de caso do longa animado Lino – Uma Aventura de Sete Vidas (2017), do diretor Rafael Ribas, entenderemos esse fenômeno dos consecutivos fracassos de obras infantis originais e sem envolvimento anterior com a televisão. Primeiramente, a produtora Start Anima e todos os envolvidos na construção de Lino merecem aplausos por terem chegado a um nível de qualidade técnica igualitária aos grandes estúdios Disney, Pixar, Dreamworks e Blue Sky, as verbas destinadas a esses filmes são bilionárias, enquanto Lino contou apenas com 10 milhões de reais para a sua produção, segundo o OCA. Nas imagens abaixo percebemos a proximidade visual que Lino conseguiu alcançar em relação aos filmes hollywoodianos, qualidade nunca antes vista pela animação brasileira.

Mas esse capricho no visual e a técnica 3D utilizada pode também ter sido um erro de um ponto de vista comercial, não pela qualidade técnica impressa, mas pela cópia excessiva dos grandes filmes estadunidenses. Lino impõe em seu roteiro uma infinidade de maneirismos e estereótipos norte-americanos, os policiais vestem roupas de policiais dos EUA, como percebemos no canto esquerdo inferior do cartaz divulgado pelo longa, na imagem ao lado. As piadas também são de contextos da cultura deles, as referências como um todo são americanas, como observamos na crítica de Juca Claudino, publicada na plataforma digital Observatório do Cinema, da UOL:

Em Lino: Uma Aventura de Sete Vidas, é interessante notar as cópias diretas de artimanhas do cinema americano – a começar pelo uso de um subtítulo – não só na linguagem estética, na qual a inspiração é pura e brutalmente as animações de Hollywood, mas também no próprio roteiro, com o uso repetitivo de piadas e situações caricatas megalomaníacas. E essas estratégias de fato retiram um pouco da personalidade do longa, além de torná-lo espalhafatoso nas suas caricaturas e desnecessariamente gritante em cada cena. Outra consequência disso é que se retira também muita sensibilidade: tudo é muito barulhento, jocoso, caricato, estrondoso, ruidoso… e a tudo os personagens reagem com bordões e tiradas cômicas genéricas. Só se esquece, com isso, de desenvolver esses personagens a um nível empático, sensível, com o qual fosse possível sentir dos seus dramas e não torná-los os pedaços frios e maquinais de repetições de bordões e piadas, sempre previsíveis e opacos. (CLAUDINO, 2017)

Se a proposta do filme era copiar integralmente os produtos de Hollywood, tal fato não ocorreu com maestria em todos os departamentos. Não basta ter uma arte e técnica incríveis, se o roteiro e a direção deixam muito a desejar, produções estadunidenses como Frozen (2013), Operação Big Hero (2014) e Meu Malvado Favorito 3 (2017) passam por um longo processo de desenvolvimento e tratamentos de roteiro antes de entrar em produção. O nosso brasileiro Lino pecou muito nesse processo. De acordo com o próprio diretor Rafael Ribas, o ato de copiar foi intencional, com o objetivo de oferecer ao público algo que eles já estão acostumados e de tirar o preconceito em relação ao filme brasileiro, mas será esse o melhor caminho?

Um exemplo de longa infantil que tem circulado muito bem no mercado internacional é o renomado O Menino e o Mundo (2014), de Alê Abreu. Apesar de não agradar tanto assim as crianças, o longa se posicionou desde o princípio como um filme autoral, que seguiria inicialmente uma carreira em festivais, para depois ser explorado comercialmente, mas claro que precisou ser muito bem premiado para conquistar o que conquistou. O filme de Alê Abreu, ainda no início de sua carreira em festivais, teve uma tentativa frustrada de estrear em salas de cinema comerciais, com apenas 61.152 espectadores e logo depois foi lançado em DVD, antes mesmo das primeiras premiações mais importantes, como a de melhor filme no festival de Annecy, na França. Após a indicação ao Oscar, em 2016, O Menino e o Mundo foi lançado em menos de 20 salas, de forma bem restrita, sendo que esse seria o momento ideal para se lançar o filme em um maior número de salas no Brasil e com algum investimento em marketing, algo que não ocorreu. De qualquer forma, com todos os prêmios e a indicação ao Oscar, o certo é que o longa está circulando muito bem comercialmente no mercado internacional, sendo vendido para mais de 80 países. A cada ano, cresce significativamente o interesse internacional pela animação brasileira, tanto que em 2018 o Brasil será o país homenageado no maior festival de animação do mundo, o festival de Annecy, na França.

Já Lino, desde o início se posicionou como um filme comercial, o objetivo de se vender bem e de valorizar a animação nacional era o que o movia a produção, o baixo desempenho nas bilheterias nos parâmetros nacionais, não refletiu na sua distribuição internacional, distribuído pela gigante Fox, o longa foi vendido para mais de 50 países e alcançou mais de 1,1 milhão de pessoas, se transformando em uma das 20 maiores bilheterias de filmes nacionais de 2017.

O maior ponto de reflexão é que o cinema infantil original precisa chegar às salas com personalidade, Lino deu um passo para frente no quesito evolução tecnológica e teve retorno por isso, mas deu dois passos para trás com sua narrativa insossa, provavelmente seu desenvolvimento seria ainda melhor se refletisse singularidade. Devíamos não olhar para os EUA como referência, pois lá a indústria cinematográfica funciona como em nenhum outro território, e sim observar como a animação japonesa conquistou seu espaço, com personalidade própria e filmes que retratam a cultura japonesa, como o premiado longa Meu Amigo Totoro (1988), do renomado diretor Hayao Miyazaki. Devíamos olhar para o que a Europa e os nossos vizinhos da América Latina estão produzindo em termos de cinema infantil. É importante também a busca por coproduções internacionais, para arrecadar mais verba aos projetos brasileiros; o Canadá, por exemplo, é um excelente e potencial parceiro, pois é um país desenvolvido e que investe no cinema latino-americano. Não precisamos criar amarras no modo de fazer cinema estadunidense, o Brasil precisa de personalidade, e precisamos encontrá-la o quanto antes, pois a produção internacional só cresce.


A RECEITA TELEVISIVA

Como já mencionamos, “D.P.A. – O Filme”, assim como os diversos filmes dos comediantes Trapalhões e da apresentadora Xuxa, e os mais recentes “Carrossel” e “Carrossel 02”, do SBT, aproveitou um sucesso prévio de celebridades e de uma série televisiva para explorar o mercado das salas de cinema, e isso não é errado. Os canais de televisão conhecem muito bem o público com que lidam. O canal Gloob, por exemplo, conquistou o primeiro lugar em audiência dentre os canais infantis com a série “D.P.A – Detetives do Prédio Azul” e desde então não parou de lançar temporada atrás de temporada do seu maior sucesso. Em 2017, em parceria com a Globo Filmes, a série migrou para o mercado cinematográfico com uma versão em longa-metragem, que não foi um recordista de bilheteria, mas atingiu um número admirável de mais de um milhão de espectadores, segundo o OCA.

A premissa da série é simples: três crianças, moradoras do prédio azul, investigam acontecimentos estranhos no condomínio em que vivem, enfrentando a síndica Leocádia e demais adversidades. Com um ponto de partida simples como esse, é possível criar inúmeros episódios, e assim o Gloob o fez, mas não pararam por aí. Com um mistério ainda mais instigante, inclusão de novos personagens, união de duas gerações de protagonistas da série, antigos e atuais, foi possível realizar um longa-metragem que não perde em qualidade para a série. O roteiro demonstra conhecer bem o seu público-alvo e ainda é agradável aos adultos, a receita de conquistar a toda a família, já planejada por diversos filmes ao longo da história do cinema infantil internacional, foi bem cumprida pelo filme, como completa o jornalista Francisco Russo em sua crítica publicada pelo site Adoro Cinema:

Para uma versão cinematográfica, como de praxe, a ideia era ampliar o leque: mais personagens, mais desafios, mais investimento na produção. Dentro desta fórmula pré-estabelecida, o grande objetivo era se tornar maior sem perder a essência - e nisto, o longa dirigido por André Pellenz é bem competente. [...] Detetives do Prédio Azul é um filme que agrada pelo capricho na execução, seja através do roteiro, da caracterização ou da própria ambientação. [...] trata-se de um filme bem feito que dialoga com competência com seu público-alvo, por mais que seja ainda preso a um certo tom televisivo. (RUSSO, 2017)

A série vende o longa e o longa renova a série, a estratégia é bem inteligente de um ponto de vista mercadológico, mas também devemos nos atentar às consequências maléficas que esse ritmo frenético da televisão e das novas mídias geram na criança de hoje. Há uma criança virtual, que interage com todo tipo de informação e conhecimento numa velocidade não compatível com a etapa de vida em que estão. (MELO, 2011, p.39). O universo da criança é algo bem distinto e necessariamente distante do universo adulto, mas com o advento da tecnologia e principalmente do consumo excessivo da televisão e da internet, a criança de hoje convive com uma erotização, violência, estereótipos e outras questões maléficas ao seu crescimento. Essa anomalia da criança virtual é um retrocesso na história da sociedade, ela se aproxima da criança da idade média, quando havia uma linha tênue e perigosa entre o universo adulto e infantil, todas as conquistas e leis de proteção à criança ficam defasadas dentro desse preocupante contexto de desaparecimento da infância.

Voltando ainda ao histórico do cinema infantil brasileiro, há de se perceber o quanto foi abusiva a exploração da Globo com seus produtos comercialmente perfeitos, filmes como os da Xuxa e dos Trapalhões traziam vícios da televisão para as telas do cinema, como o merchandising e a colocação do produto acima dos valores da infância, nos filmes da Xuxa, por exemplo, a própria apresentadora era colocada como objeto de venda, “a protetora das crianças”, a criança deixa de ser sua própria heroína, de buscar a resolução de seus próprios conflitos e se apegam à figura da Xuxa com uma heroína, característica prejudicial à formação desses espectadores. João Batista, em Lanterna Mágica – Infância e Cinema Infantil, discorre sobre o filme Xuxa e os Duendes (2001):

[...] Não se vendem produtos durante a exibição do filme. Na verdade, todos os componentes do filme é que são produtos. A começar por Xuxa, que já traz em seu rastro uma miríade de produtos, além de se representar a venda de outras marcas às quais associa seu nome (celulares para crianças, por exemplo). A ela se juntam outros astros televisivos, cada um com seu mix de produtos que terminam não sendo vendidos diretamente ali no filme, mas através de um processo de associação de imagem. Gugu Liberato, Angélica, Wanessa Camargo, Ana Maria Braga e etc. (BATISTA, 2011, pg. 144)

Sobre o longa A Princesa Xuxa e os Trapalhões (1989), o autor ainda discorre:


Mas não são apenas hábitos de consumo que transmitem os filmes infantis brasileiros originados da televisão. Muitos deles trazem consigo conceitos de raça e gênero que, muitas vezes, reproduzem preconceitos estruturais da sociedade. Por exemplo, nos créditos de A Princesa Xuxa e os Trapalhões, em que animações representam os quatro atores numa espaçonave, o menino Mussum, negro, [...] é puxado para controlar uma máquina que lava pratos. O que poderia ser uma crítica às práticas raciais do país pode se transformar, ainda que não intencionalmente, numa piada conformista. (BATISTA, 2011, pg. 138)

É importante que os filmes continuem existindo e que a TV tenha seu espaço no mercado cinematográfico, mas também é necessário que essas produções se atentem aos seus papeis como comunicadoras e formadoras de opinião. As obras autorias ou originais, que se posicionam com personalidade, costumam se preocupar mais com o avanço moral e ético da sociedade, como o longa O Menino e o Mundo, que aborda de forma profunda questões ambientais e sociais, mas que precisou ser muito bem reconhecido e premiado para ser enfim visto. Filmes com essa garra precisam de mais espaço e para isso é fundamental que se alinhe as narrativas ao público-alvo que se pretende alcançar, como faz a televisão com maestria.

A televisão teve e ainda tem um papel importante na formação de público para o cinema infantil brasileiro, mas precisamos modernizar nossas receitas e ousar no fazer cinematográfico a ponto de conquistar todas as vertentes de público: aqueles que só assistem filmes hollywoodianos, aqueles que adoram as comédias brasileiras, aqueles que consomem o cinema infantil televisivo, aqueles que são ligados em filmes autorais e tantos outros que consomem cada vez mais conteúdo audiovisual nessa era digital. O cinema infantil tem uma grande fatia de mercado disponível, só é necessário encontrar um bom caminho o quanto antes, para que o Brasil seja visto e reconhecido não só aqui, nas nossas salas de cinema, mas em todas as plataformas e janelas possíveis.


CONCLUSÃO


O cinema infantil deve entrar num patamar de discussão, onde pouco se produz e se pensa no Brasil, e muito se consome, através de produtos vindos de fora. É necessário entender a história e a infância para realizar filmes com a excelência que as crianças precisam para sua formação. Cinema infantil é arte e deve ser valorizado dentro de um campo artístico com a sua narrativa e linguagem, para dialogar de forma inteligente com seu espectador e não se deixar dominar pelo mercado que enxerga as crianças apenas como consumidores de produtos audiovisuais.

O cinema infantil brasileiro e seu mercado devem se reinventar, precisamos encontrar novos caminhos e de forma inteligente. Devemos buscar inspirações em países como o Japão, que conquistou o mundo com seus animes, sem deixar de valorizar sua cultura e valores. As parcerias e coproduções com outros países são necessárias, a verba destinada às nossas produções são baixas, é necessário somar forças, ainda mais nessa avassaladora crescente da produção de conteúdos. Países como nossos vizinhos da América Latina, Canadá, França, Espanha, Itália, Alemanha, Portugal e outros, estão em um avanço constante na produção de animação, é necessário ficar atento ao que está sendo produzido.

O Brasil é um país continental e muito rico culturalmente, precisamos valorizar a nossa cultura e conversar com o nosso público, os filmes originais precisam buscar sua personalidade sem deixar de lado o seu país, sem o vício de se copiar um mercado ilusório para a nossa realidade, como o dos EUA. Devemos evoluir tecnologicamente, mas evoluir com uma busca constante pelo nosso jeito de fazer cinema. A TV tem a sua receita que funciona muito bem comercialmente, devemos observar os pontos positivos dessa estratégia a aplicá-la de alguma forma em nossas futuras produções. O cinema infantil brasileiro só depende de nossas escolhas, precisamos desenvolver com perfeição os nossos projetos, valorizar os recursos quando eles já estão em nossas mãos, para que assim avancemos e conquistemos o nosso público.


REFERÊNCIAS


JUCA, Claudino. Crítica – Lino: uma aventura de sete vidas. Disponível em: < https://observatoriodocinema.bol.uol.com.br/criticas/2017/09/156154> Acesso em: 02 de dezembro de 2017.

RUSSO, Francisco. Crítica – Detetives do prédio azul (D.P.A.) – O Filme. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-248905/criticas-adorocinema> Acesso em: 01 de dezembro de 2017.

CARMELO, Bruno. Lino – Uma aventura de sete vidas: diretor Rafael Ribas explica como fazer uma animação brasileira comparável às americanas. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-133346/> Acesso em: 02 de dezembro de 2017.

MELO, João Batista. Lanterna Mágica: Infância e Cinema Infantil Edição. Rio de Janeiro - RJ: Editora Civilização Brasileira, 2011.

OCA – OBSERVATÓRIO BRASILEIRO DO CINEMA E DO AUDIOVISUAL. Banco de dados. Disponível em: <https://oca.ancine.gov.br/>. Acesso em: 02 de novembro de 2022.

EXIBIDOR, Renata Vomero. Disponivel em: <https://www.exibidor.com.br/noticias/mercado/9200-34lino34-torna-se-filme-brasileiro-mais-vendido-no-exterior>. Acesso em: 02 de novembro de 2022.






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