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Maria Parteira - A MÃE DE MUITOS FILHOS DO CRIMEIA LESTE

Atualizado: 5 de dez. de 2023

Era uma manhã daquelas iluminadas, fomos à casa de Dona Maria Parteira, que, através de suas mãos fez o parto de muitas mulheres que viveram nas décadas de 60 e 70 e ainda vivem no Crimeia Leste e bairros próximos. Muitos amigos nossos, jovens, que circulam por aí, são filhos, netos, bisnetos, de mulheres que deram à luz pelas mãos de Dona Maria Parteira, uma mulher guerreira que merece todo o carinho da nossa comunidade. Nesta entrevista, Dona Maria, aos 99 anos, relembra momentos alegres e tristes de uma época, em que o sistema de saúde pública no país ainda engatinhava e as parteiras eram essenciais para a vida humana. Foi a minha primeira entrevista especial feita para o Jornal Criméia a convite do saudoso amigo Sinval Félix. Dona Maria Parteira chegou aos 100 anos vindo a falecer posteriormente.


Carlos Pereira

Dona Maria Parteira

Jornal Crimeia - Onde a senhora nasceu e como a senhora chegou ao Crimeia Leste?


Maria Parteira - Eu nasci em Uberlândia MG em uma fazenda. Mudei pra cá em 1964, tinha poucas residências. Tinha os polonês. Do Crimeia Leste à Nova Vila era um trilheiro. Depois da Igreja é que o Crimeia começou a crescer. Tinha a chácara da Julieta, a Tutinha que trabalha no hospital, o homem do caminhão, poucas pessoas.


Jornal Crimeia - A senhora sabia que o Sinval é filho de Dona Elisa e a senhora é que fez o parto dele?


Maria Parteira - Eu é que fiz ele nascer, que coisa boa uai… Dona Elisa... gosto muito dela. Elisa é um nome abençoado.

Sinval – Eu e quase todos os meus irmãos nascemos das mãos de dona Maria Parteira.

Maria Parteira - Tem muita gente aí que fiz nascer. Um dia eu tava lá no Dergo, muito longe daqui naquela época, eu tinha feito um parto e vinha a pé, aí parou um rapaz de carro e disse, entra aqui...quando ele falou assim, eu pensei: foi eu que fiz o parto dele.

Sinval – Eu até pouco tempo chamava a senhora de madrinha quando a encontrava na rua.

Jornal Crimeia - Como era esta história de fazer parto naquela época, como a senhora começou.

Maria Parteira - Foi por acaso. Eu trabalhava de enfermeira em Araguari, tinha um patrão bom outro ruim, fui embora cuidar da minha vida, ficar trabalhando feito burro pra este povo ganhar dinheiro. Arrumei as malas, peguei mãozinha do João (filho dela que hoje é médico) e vim parar no Criméia. Quando cheguei aqui comecei a lavar roupa. Após uma semana a mulher de um ferroviário estava para dar à luz, o Geraldo meu cunhado disse que eu era doutora, fui lá fiz o parto e nunca mais tive sossego. Em Araguari, quando era enfermeira eu ajudava a fazer parto, mas como parteira comecei aqui no Crimeia Leste.


Jornal Crimeia - - Como era o dia a dia da senhora?

Maria Parteira - O povo ia me buscar em casa, podia ser a hora que fosse, pegava o material e ia embora, fazia o parto...quando a mulher tinha qualquer problema mandava chamar o carro pra levar pro médico, nunca perdi uma mulher, nunca morreu um bebê na minha mão.

Jornal Crimeia - Quantos partos a senhora fez?


Maria Parteira - Eu comecei a anotar, depois eu larguei. Tinha mês que eu fazia mais de trinta partos. Tinha noite que fazia três partos. Um dia eu fui fazer o parto da mulher de um soldado. Disse a ele que ela não vai dar a luz antes das sete horas, fui embora. Quando voltei ele tava pulando alto, bravo.. A senhora não tá vendo que eu sou soldado? Eu falei – Não tenho medo de você, sua farda não vale nada, senta aí e fica calado. Quando faltava cinco pras sete, a criança nasceu, aí eu agarrei ele pela blusa e falei – Aqui rapaz você tá mexendo é com gente (mostrei o bebê a ele). Ah, dona Maria me desculpe, disse o soldado. Outro dia, à noite, eu fiz o parto lá na rocinha. Antes o marido dizia ao amigo – Você tá com fé nesta mulherzinha magrela aí? Eu fiz o parto e fui embora. Antes ouvi o amigo falar lá do quarto, já era de madrugada, - Tá vendo, você falou mal da mulher e o menino já nasceu - aí veio me pedir desculpas. Eu disse – Gente que nasce pra trabalhar, pra viver é arriscado a receber muita coisa, você não me conhece, quem me conhece é quem me indicou...ele ficou sem graça.

Jornal Crimeia - A senhora perdeu a conta então de quantos partos fez?

Maria Parteira - Muito mais de mil. Um dia fiz um parto debaixo da ponte no Córrego Botafogo, correu tudo bem. Outro dia fui fazer um parto complicado, chamei a viatura e mandei levar a mulher para a Santa Casa, nunca morreu mulher na minha mão. Quando o parto era perigoso eu mandava pro hospital. Só quando não dava tempo eu fazia, tirava a criança, fazia massagem, mas nenhuma morreu durante o parto.

Jornal Crimeia - Muita gente que nasceu no Crimeia foi a senhora que fez o parto?

Maria Parteira - Muita gente, não lembro dos nomes, mas às vezes tô andando na rua, uma mulher chega e me abraça – eu falo – não te conheço, que diabo, tá doida mulher? Aí ela fala – Oh Dona Maria, a senhora pegou o meu neném. Um dia recebi o abraço de uma senhora que falou assim – Oh dona Maria, eu tinha passado mal, a senhora fez o meu parto, me deu roupa de cama, comida, depois a senhora trouxe roupa pro menino que nasceu. É que depois que fiz o parto, vi que a mulher era pobre, peguei a minha bicicleta e trouxe uma mala de roupa, dei banho no neném, vesti roupa nele. Tempos depois a encontrei. Ela disse – meu filho quer te ver Dona Maria, quer te dar um presente. Eu disse – A senhora fala pra ele que eu não quero nada, só quero que ele peça a Deus por mim, ele pedindo a Deus pra me ajudar é melhor que um presente, um presente acaba, a fé dele com Deus pra mim ajudar é melhor que tudo que a senhora quer me dá. Ela disse, ele já comprou presentes duas vezes e não acha a sua casa. Eu fiquei com dó, mas até hoje nunca apareceu.

Jornal Crimeia - A senhora é abordada então na rua até hoje e as pessoas lembram dos partos? E a senhora já teve alguma situação difícil ao fazer um parto? .


Maria Parteira - Às vezes, passo na rua, as pessoas gritam Eh Dona Maria, a senhora fez o parto do meu filho. Um dia desses, ia lá no Supermercado Juazeiro, um carro me parou. Disseram – Para aí mulher. – O que você quer comigo?. – Quero levar a senhora na sua casa. Depois fiquei sabendo que era um homem que eu fiz um parto da mulher dele de dois meninos...eles não esquecem não...já eu não lembrava dele, fiz muitos partos, já passei muito trabalho também...

Entrevista realizada por Carlos Pereira e Sinval Félix em abril de 2010 para a edição nº 33 do Jornal Crimeia
Já tive muito medo...uma vez, era de madrugada, apareceu dois homens em um carro na minha casa. Um deles falou assim, eu vim buscar a senhora para fazer o parto da minha mulher...um menino...eu fiz um parto de um menino tão bonito...tinha um tamborzão assim...o menino tinha acabado de nascer e eles jogaram dentro do tambor prá matar a criança. Foi jogar o menino lá subiu aquele fumação...

...eu falei me dá o menino pra mim que eu cuido dele, eu crio, eu não falo pra ninguém de onde ele veio...no meio do cerrado, num ranchinho que fizeram... eu disse- eu falo que ele não tem pai nem mãe...não mata a criança... e jogaram ele lá, o menino...bonito...a moça era a coisa mais linda também, nos dedos tinha só brilhantes. Era gente muito rica, acabou de dar a luz, ajuntaram tudo e jogaram o menino lá dentro...eu não gosto nem de lembrar disso. Eles falaram pra mim. Olha dona Maria me indicaram a senhora porque a senhora é boa parteira, eu vou levar a senhora mas não precisa ter medo, nós queremos só o serviço. Eu não gosto nem de pensar...é duro a gente ver uma coisa dessa, meu Deus.


Jornal Crimeia - Mas porque fizeram isso Dona Maria?


Maria Parteira - Não sei, acho que é porque a moça era muito rica e não podia aparecer o filho, os dedos dela estavam cheios de brilhantes, ela era linda.


Jornal Crimeia - Quando aconteceu isto?



Maria Parteira - Tem muito tempo, uns 15, 20 anos. Até hoje eu não gosto de lembrar, menino sadio, gordo, bonito. Quando eles chegaram, estavam de chapéu. Abrir a porta, vi os dois, assustei, eu falei – o que vocês querem. Nós queremos a senhora, pode trancar a casa e vir com a gente, não precisa ter medo, nós não vamos fazer nada com a senhora, só queremos o serviço. Eu disse – Não vou não. A senhora vai, vamos agora. Chegando lá, um ranchinho que fizeram no meio do cerrado...Moça bonita...como essa mãe deixou matar o filho, meu deus do céu, não aguento nem lembrar, que tristeza meu Deus. Acho que no tambor tinha ácido..jogou lá...só saiu fumaça, eu falava isto é pecado, me dá o menino. Eles disseram: aqui não tem apelo....este povo não vai ter felicidade na vida nunca.



Jornal Crimeia - Depois de uma pausa, já que Dona Maria ficou muito emocionada ao relatar a história voltamos a falar dos partos no Criméia. Dona Maria além do Sinval, tem outras pessoas que a senhora encontra que nasceram das mãos da senhora?

Maria Parteira - Ah, tem muita gente, eu tava lá no Dergo, um rapaz falou assim, entra aqui no meu carro, Eu falei: eu não sou doida, eu não te conheço. A senhora tá achando que não me conhece, a senhora é minha avó. Eu disse – não tenho neto. Oh Dona Maria foi a senhora que fez eu nascer.


Jornal Crimeia - A senhora fazia os partos de bicicleta?

Maria Parteira - Era, mas mexiam muito comigo, os motoristas, aí meu filho vendeu a bicicleta com medo que acontecesse algo comigo, um acidente ou outra coisa. Eu ia para o Dergo, Palmito, pra todo lado, fazer parto de bicicleta.. Fiz um em Campinas na máquina de arroz do Pedro Abrão. Peguei a bicicleta e vim embora, chegando em casa tive que voltar pra fazer outro parto de uma funcionária, tudo de bicicleta. Depois que meu filho vendeu a bicicleta, fiz poucos partos.

Jornal Crimeia - Além da Dona Elisa, mãe do Sinval, a senhora lembra de outras mães que a senhora fez o parto aqui no Criméia?

Maria Parteira - Tem mulher aí que nem conheço, mas lembro da Maria das Graças, a Gracinha, a Tutinha, tem mais, muito mais, mas eu não me lembro os nomes.

Jornal Crimeia - E na Nova Vila.

Maria Parteira - Na Nova Vila, também fiz muito parto, fiz da mulher do Nilo que mexia com leite...ah muita gente...eu tinha um caderno com os nomes, mas molhou na mudança e eu joguei fora, tinha mês que era mais de trinta partos.

Jornal Crimeia - O que levou a senhora a fazer estes partos?


Capa do Jornal Crimeia de abril de 2011, em comemoração aos 100 anos de Maria Parteira

Maria Parteira - Ah, não sei não, o povo gostava e confiava em mim, me chamava e eu ia. Quando eu falava não, eu não ia. Aqui próximo fiz um parto de três bebês, um homem e duas meninas. A mãe já morreu, chamava Elisa também, o pai eu não me lembro....Elisa, Elisa tem a mãe do Sinval, a minha filha. O marido dela casou outra vez, acho que mora no Criméia Oeste. Depois de uns três anos, dois dos meninos morreram, só ficou um.

Jornal Crimeia - A senhora tem dois filhos?

Maria Parteira - Sim. Um adotado. Um dia falaram assim. Dona Maria tem uma mulher pobre passando mal embaixo da ponte, fui lá, logo a menina nasceu, bonita, muita gente queria a menina, daí a mãe falou, ninguém toca nela, só a Dona Maria, ela vai pegar e criar ela. Elisa hoje é enfermeira. Trabalha em Brasília.

Jornal Crimeia - Porque a mãe não ficou com a filha?

Maria Parteira - Pobre. Ela deu a luz no chão só com uns panos...Eh menina boa a Elisa, tenho tanta saudades dela. Elisa é um nome abençoado. Eu tinha uma prima que se chamava Elisa, era empregada dela. Aí ganhei Elisa para criar e falei que ia dar o nome dela. (se emociona). Tenho muitas saudades da minha filha Elisa..

Jornal Crimeia - Dona Maria depois de tantos partos, o que a senhora pensa de ter trazido tanta gente ao mundo?

Maria Parteira - Eu acho que isto tudo o que aconteceu foi Deus, se eu não tivesse fé em Deus não tinha acontecido nada. Tudo isto dos partos...nunca morreu uma criança na minha mão, não é por Deus. É Deus que guia a gente, gosto muito daqui, tenho muita amizade, não tem mais o que explicar.



Jornal Crimeia - O que a senhora tem a dizer aos muitos filhos do Criméia que nasceram das mãos da senhora?


Maria Parteira - Deus que dê saúde pra eles, muita coisa boa, é a minha vontade, quero ver todo mundo bem, a melhor coisa do mundo é ver uma pessoa feliz. Pra mim felicidade é tudo. Só quero que Deus se lembre de mim, já vivi muito, minhas irmãs morreram quase todas, tenho só um irmão e uma irmã...tenho muitas saudades da Elisa, ela liga cedo e de noite, ainda vou dar um retrato dela para a cumade Elisa (mãe do Sinval). Eu tinha quinze anos e tinha uma prima que se chamava Elisa, gostava muito dela, minha mãe me carregou e eu fui embora, depois apareceu uma mulher pobre para eu fazer o parto, ela me deu a filha, hoje ela é Elisa, uma grande enfermeira. Elisa é um nome abençoado.

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Apresentação:


“Este projeto foi contemplado pelo Edital de Arte nos Pontos de Cultura Aldir Blanc - Concurso nº 02/2021-SECULT-GOIÁS – Secretaria de Cultura - Governo Federal"



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