Aos 91 anos, Irmã Margarida é daquelas pessoas que nascem com um destino e se dedicam a ele por toda a vida. Pregou nas missões pelo sertão goiano e paulista. Enfermeira por profissão, viajou de canoa, jipe, a cavalo e muitas vezes a pé para acudir às paróquias levando Deus e felicidade às pessoas, como ela gosta mesmo de dizer, a sua maior missão. Na década de 80 atuou aqui na região do Crimeia Leste por mais de 10 anos. A opção pelos excluídos levou irmã Margarida a ter muitos filhos de criação. Irmã Margarida levava a sua fé em Deus para as ruas, acolhia as putas nos prostíbulos, presídios, os alcoólatras, drogados, sem discriminação, dedicando toda a sua vida às pessoas que viviam à margem da sociedade. Ephigênia Margarida da Silva, a irmã Margarida nasceu em Minas Gerais na pequena cidade de São João Batista de Itamarandiba, em 21 de fevereiro de 1920. Esta entrevista foi realizada por Carlos Pereira e Sinval Felix no Jornal Criméia de fevereiro de 2011. Irmã Margarida veio a falecer em 14 de novembro de 2018.
Boa viagem a todos
Jornal Crimeia - Quando e como a senhora se tornou religiosa?
Irmã Margarida - Quando tinha 15 anos. Em minha vida toda nunca pensei em outra coisa. Eu não tinha irmãs na cidade onde eu nasci. Eu pensava assim: quero ser só de Deus e queria trabalhar para Deus. Sou da congregação religiosa da Assunção, uma congregação
francesa consagrada ao ministério da Assunção de Nossa Senhora. Aprendi a língua francesa. Ajudei a fazer a tradução dos escritos da nossa fundadora do francês para o português. Eu nuca parei de trabalhar. Nunca tive tempo nem de ficar doente.
Jornal Crimeia - Como é esta história de ir para os cabarés levar a palavra de Deus?
Irmã Margarida - Trabalho com todo mundo. Não vejo diferença das pessoas e nem de lugar. Fui a cabarés levar a palavra de Deus porque sempre quis levar Deus a todos os lugares. Levando a palavra de Deus às prostitutas e também aos frequentadores. O povo falava que eu era doida. Inclusive Deus fez um milagre muito grande nesta minha caminhada. Uma vez fui fazer uma catequese para mulheres da vida em Itapaci no interior de Goiás e de repente o telhado voou e foi cair na rua. Eu ia lá rezar com as mulheres nos cabarés. Falar de Deus. Nunca falei nada contra a opção de vida delas. Eu ia lá rezar com elas, falar da bondade de Deus, o amor de Deus, que Deus apesar das nossas fraquezas, é tudo. Jesus Cristo morreu na cruz para nos dar a salvação.
Jornal Crimeia - Como a igreja reagiu a esta ação da senhora?
Irmã Margarida - Alguns falavam assim: deixa ela, esta aí é atrapalhada. Toda a vida fui assim. Trabalhei com todo mundo sem nenhum preconceito. Nunca fiz diferença de religião, de pessoas, ou de lugar nesta minha peregrinação. Eu tenho 54 filhos adotados. Muitos acolhi já adultos nas ruas, outros nos cabarés. Para tudo quanto é lado que ia, eu acolhia quem precisava, as pessoas excluídas, muitas envolvidas com drogas. Levava elas para a minha casa e cuidava, dava comida e levava a palavra de Deus. Nunca precisei levantar a voz para chamar a atenção de ninguém. Nunca bati também. Formei muita gente.
Jornal Crimeia - Como as pessoas nas ruas, nos cabarés, alcoólatras e drogados recebem a senhora?
Irmã Margarida - No início, elas acham estranho, mas depois recebem muito bem. Entendem a minha missão. A gente vai conversando devagarzinho, catequizando, mostrando a realidade, pedindo a Deus. Todo ser humano é capaz de mudar, não existe ninguém incapaz. As pessoas erram, às vezes, por motivos naturais. Ter as coisas ou não ter, às vezes leva as pessoas para um caminho errado. Mas o nosso objetivo é a felicidade eterna. Eu visitei muitas prostitutas, levei a elas a palavra de Deus. O dia que as pessoas entenderem que a vida na terra passa e que o principal é fazer o bem, que o valor são os bens eternos, elas deixam de errar. É isto que eu busco mostrar. Manifestar o valor de Deus para as pessoas. Fui levar fé aos cabarés com mulheres terrivelmente perdidas. Muitas deixaram o local e mudaram de vida. É por isso que vou continuar minha missão até o fim da minha vida. Deus é tudo. Nós somos o que não somos e, pelo poder de Deus, somos o que somos.
Jornal Crimeia - Por onde a senhora andou antes de chegar a Goiânia?
Irmã Margarida - Antes de vir para Goiânia, eu morei em São Paulo. Estive também em muitas cidades e povoados de São Paulo e do interior de Goiás, muitas hoje no estado do Tocantins. Fiquei nas missões por 23 anos. Rodei várias cidades e povoados destes estados. Fui para tudo quanto é lugar levando a palavra de Deus aos excluídos. Rode Gomi, Lagartixa, Bugiganga, Pindaíba, Petengo, Cachorro sentado, Paletó Rasgado, Quiabo Assado, Pirraça, Caimã, Fazendinha, Nortelândia, Teresópolis, Nova Fonte, Bom Jesus, Itapaci, Guarinos eu trabalhei 15 anos. Baixa da Serra, Petrolina, Luzelândia, Terezinha, Hidrolina, Arapoema, Miracema, Porangatu, Paraíso do Norte, Araguaína, Posse, Alvorada do Norte, Lagoinha dos Pretos, Goiânia, Nerópolis, Nova Veneza, Silvânia, Uruana, Rio Verde, São Luís do Norte e Pilar de Goiás, entre outras que não me vem à memória agora.
Jornal Crimeia - E aqui na região do Crimeia Leste, como foi o trabalho da senhora?
Irmã Margarida - Vim para cá na década de 80. Fiquei muito tempo, uns 10 anos, trabalhando para tudo quanto é lado onde tinha gente excluída. Trabalhei com o padre Sérgio, padre Alcides, com vários padres. Trabalhei com todo mundo. Não me interessa se é crente, descrente, espírita, evangélico, católico, puta, drogado, alcoólatra, pra mim não importa. O que importa é manifestar a bondade de Deus, quando a pessoa vê a bondade de Deus, ela muda a sua vida. Quando chego em um lugar, eu procuro conhecer todo mundo, eu não faço diferença das pessoas. Procuro tratar todo mundo igual. Deus não despreza ninguém. Quer o bem de todos os filhos. Todos nós somos filhos de Deus. A bondade de Deus é infinita.
Jornal Crimeia - Como foi o trabalho da senhora nas favelas da região?
Irmã Margarida - Igual a todo lugar. Eu morei no setor Norte Ferroviário junto com uns filhos de criação que achei nas ruas, nos cabarés, mesmo o povo me chamando de doida. Fiz de tudo. Ia nas casas das invasões, tomava drogas das pessoas. Ninguém me impedia. Falava que a droga fazia mal e dava a bênção para as pessoas. Tirei muita gente das drogas. Eu não tinha medo de nada. Tomava até armas das pessoas nas favelas. Deus toma conta das nossas ações quando queremos ajudar o próximo. O poder de Deus é maior que tudo. Pegava as pessoas enfermas e as levava aos hospitais, quando chegava nas unidades de saúde com um enfermo era atendido na hora. Chega lá e dizia: tem que atender, se precisar internar, interna. É Deus. Muita gente, o povo, políticos e empresários me apoiavam.
Jornal Crimeia - Como a senhora mantinha a casa com tanta gente acolhida?
Irmã Margarida - Aí é que eu digo que é graça de Deus. Porque eu não tinha recursos. Mas muita me ajudava e nunca faltou nada para mim e para meus acolhidos. Por isto que digo que Deus age na gente quando a gente faz o bem. Muita gente mudou de vida quando eu acolhi. Drogados alcoólatras, prostitutas e todos perseveram no bem. Isto que é bonito, graças a Deus. A minha missão é só uma, fazer as pessoas felizes aqui na terra e na eternidade. É a única missão que tenho. Nomes de pessoas eu não guardo. Cuidei de muita gente. Todos lembram de mim quando me veem na rua. Sempre aparece alguém que ajudei no passado e me pede para ir em algum lugar ajudar outras pessoas. Se vier, eu tiver condições, eu vou aonde for preciso. Não excluo ninguém.
Jornal Crimeia - Alguma vez a senhora foi agredida nestas ações?
Irmã Margarida - Teve uma pessoa. Eu dei comida e após ele comer, ele veio e deu um murro no meu rosto. Quase perdi a visão. Não procurei saber nem quem era. Rezo por ele até hoje. Nesta vida toda, muita gente ainda acha que eu estou errada de agir assim. Falam que eu estou ajudando bandidos. Aí eu pergunto: Jesus Cristo morreu na cruz para salvar quem? Tenho que ajudar aqueles que estão perdidos, excluídos, que estão passando necessidade.
Os que se acham perfeitos, não precisam de minha ajuda. Ajudo aqueles que são chamados de vagabundos pela sociedade. Eu não estou nem aí, vou continuar ajudando da mesma forma. Podem me chamar do que for, inclusive de vagabunda: “Sou uma vagabunda de Deus”. Eu só tenho uma ambição na vida. Fazer o bem e fazer as pessoas felizes.
Jornal Crimeia - A senhora continua com disposição de agir da mesma forma ajudando os excluídos?
Irmã Margarida - Continuo do mesmo jeito, disposta a trabalhar dia e noite.
Jornal Crimeia - Onde a senhora está atuando hoje?
Irmã Margarida - Continuo indo para tudo que é lugar. Faço catequese nas ruas. Entro em uma kombi nos sábados e domingos à noite e levo comida para os excluídos. Saio alimentando as pessoas e levando a palavra de Deus. Todos são filhos de Deus. Todos são destinados à vida eterna. O importante é a gente ajudar as pessoas. Fui convidada e hoje oriento na fé até os policiais militares. Vou também aos presídios. Vou da cadeia à polícia, nas escolas, invasões, nos cabarés, nas ruas. Onde tiver gente precisando eu vou. Eu só quero que as pessoas sejam felizes neste e no outro mundo.
Jornal Crimeia - A senhora mantém contato com os filhos de criação que já não estão mais na sua casa?
Irmã Margarida - Mantenho amizade com todos. Tenho filho de criação até na Itália.
Jornal Crimeia - Como a senhora vê o mundo hoje?
Irmã Margarida - O mundo é o mundo. Jesus Cristo morreu na cruz para salvar este nosso mundo. Como é que o mundo era, é e será, é continuar levando alegria e a salvação para todos com ações e a palavra de Deus.
Jornal Crimeia - Como a senhora vê as diferentes religiões?
Irmã Margarida - Viver com atritos é falta de conhecimento. Se as pessoas tivessem conhecimento profundo da religião não viveriam assim. Religião quer dizer, ligado a Deus. Se sou ligado a Deus, vou procurar a felicidade de todos em distinção. Compreender as pessoas. Todo ser humano é ligado a Deus. Quando Deus fez o ser humano, ele fez a sua semelhança.
Jornal Crimeia - A senhora se arrepende de alguma ação na sua vida?
Irmã Margarida - Só se errei em alguma coisa que tenha ofendido a Deus, se isto tiver ocorrido, me arrependo. Mas ajudar as pessoas da forma que eu faço não me arrependo não.
Jornal Crimeia - A senhora está morando no setor Novo Horizonte em Goiânia. Como é a atuação da senhora aqui?
Irmã Margarida - Trabalho do mesmo jeito. Com todo mundo. Todos que me procuram. Vou às casas. Faço a bênção dos doentes. Sou enfermeira por formação. Cuido gratuitamente das pessoas. Moro aqui com o Walter, um filho de criação que conheci na rua. Ele é enfermeiro no HDT hoje. Quando o acolhi, morava na rua. Constituiu família. Todos os meus filhos de criação me acolhem. Eu mesmo não tenho nada. Só tenho a congregação. Não moro lá porque não quero já que estou dia e noite pregando a palavra de Deus nas ruas e em tudo quanto é lugar dia e noite. Prefiro morar com meus filhos de criação que assim cumpro a minha missão. Como enfermeira e religiosa, fiquei no sertão por 23 anos levando a palavra de Deus aos mais necessitados.
Jornal Crimeia - Irmã, estamos chegando ao final da entrevista, como é nossa tradição, dê aí um depoimento final. Fale o que tiver vontade.
Irmã Margarida - A melhor coisa que as pessoas podem fazer nesta vida, é manifestar a bondade de Deus para o próximo e isto tem que ser feito através de ações e orações. O dia que as pessoas se conscientizarem da importância de serem conhecedoras da bondade de Deus, as coisas mudam aqui na terra. As pessoas, hoje, se preocupam com as coisas materiais. É preciso mudar isso. É preciso olhar para cima e enxergar Deus. O ser humano, às vezes fica perdido, angustiado, batendo cabeça aqui e ali porque não tem Deus dentro de si. O dia que isso mudar, o mundo será um paraíso antecipado. É por isso que continuo trabalhando, levando a palavra de Deus a todos os lugares. Só Deus tem a capacidade de mudar o mundo. Eu sou feliz e minha missão é fazer as pessoas felizes. Peço a Deus que continue me ajudando a ter forças para ajudar as pessoas, sejam quem for, não faço distinção de a ou b. Alcoólatra, putas, drogados, o que interessa é levar Deus e ajudar as pessoas serem mais felizes.
Apresentação:
“Este projeto foi contemplado pelo Edital de Arte nos Pontos de Cultura Aldir Blanc - Concurso nº 02/2021-SECULT-GOIÁS – Secretaria de Cultura - Governo Federal".
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