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Arlene Rocha e o grupo Sandança de Arte Popular

Atualizado: 5 de dez. de 2023


Arlene Rocha viveu no Crimeia Leste até os anos 80 quando criou o Grupo Sandança de Arte Popular no bairro. O grupo era formado por várias crianças e adolescentes da região. Fez história com apresentações no bairro, nas ruas, no Teatro Goiânia e em vários municípios do estado de Goiás e Tocantins. Depois Arlene criou o grupo Cafuné Sentimento em Dança, que virou ponto de encontro dos artistas alternativos da capital na década de 80. A artista crimeiense então resolveu voar mais longe e se mudou para a Bélgica na Europa onde mora e tem uma companhia de dança popular que trabalha com a cultura popular brasileira. Uma história rica de uma artista, empreendedora cultural, que cultivou muitos sonhos nas crianças e adolescentes da região nos anos oitenta e, alguns, hoje adultos, continuam no Crimeia, outros, foram voar por outras bandas. A entrevista foi realizada no Paulinhos Bar no Crimeia Leste, início de maio de 2011 com a presença de Sinval Félix, Tânia (irmã de Arlene), os amigos Fafau e Bárbara, em meio a muitas histórias de um Crimeia romântico há 40 anos atrás.


Boa viagem a Todos

Carlos Pereira


Jornal Crimeia – Como surgiu a história do Sandança?


Arlene Rocha – Eu participava do grupo de dança da Universidade Federal de Goiás e, como sempre e até hoje, gosto muito da cultura popular. Então eu comecei a trabalhar com crianças da região, Vila Montecelli, Crimeia Leste. Na verdade eu não tinha muita experiência. Comecei a passar para estas crianças o que estava vivendo, a fazer coreografias. Era muito prazeroso fazer este tipo de trabalho no início dos anos 80. No bairro tinha o Jornal Crimelão, um jornal feito pelos moradores da região. Tava começando a democracia, ou seja, estávamos saindo de uma Ditadura Militar. Eu me lembro bem que uma vez a gente iria fazer uma apresentação com as crianças no Teatro Goiânia pela causa da Nicarágua e a censura não deixou. As crianças começaram a chorar, perguntavam o que estava acontecendo, a censura não quer deixar a gente dançar? Elas nem sabiam o que era censura, era como se fosse um monstro, foi muito triste.



Jornal Crimeia – Como foi a história do grupo Sandança?


Arlene Rocha - Durou uns três anos. Apresentávamos em Goiânia, nos teatros, nas praças. Fomos em várias cidades de Goiás e até em Gurupi e Porto Nacional no estado do Tocantins. Além das crianças da região, tinha o Urias, hoje um grande ator no Maranhão. Carlos Soares, grande dançarino. O Aguinaldo, hoje Guido Campos, grande ator goiano. Você também participou desta história né Carlos. A gente alugou uma casa no Centro de Goiânia e criamos também o grupo experimental e escola alternativa de dança Cafuné que era frequentada por muita gente de dança e teatro da época. Fazíamos vários espetáculos experimentais. Ao contrário do que é a dança hoje com o grupo Quasar que é um grupo muito técnico, a gente trabalhava muito na intuição, na vontade de experimentar novos rumos na área da dança e do teatro. Mesmo sem muita técnica a gente tinha um trabalho bonito que era gostoso de fazer e de ver. Os anos oitenta ainda eram muito próximos dos movimentos hippie. A gente sofria muita influência na maneira de ser, de pensar, do que se queria do mundo, com menos regras do que era a sociedade antes do movimento hippie que foi uma revolução de comportamento. Não havia uma revolução econômica, mas sim de comportamento. Isto era muito importante.


Jornal Crimeia – Mas aqui no Crimeia como era esta relação das crianças, da arte, com a comunidade?


Arlene Rocha – O Crimeia era um bairro como qualquer outro, dentro de uma cidade há trinta anos atrás. Goiânia era uma cidade pequena, pacata, sem muitas indústrias; tinha praticamente o serviço público. Pouquíssimos e pequenos comércios. Os bairros pareciam mais cidades do interior, onde todo mundo se conhecia e onde existia confiança, como são hoje muitas cidades do interior. O Crimeia era assim uma cidade do interior onde havia muita confiança entre as famílias. Não era esta rapidez desenfreada que a gente percebe hoje. Eu era a filha do Sargento Luiz, da Dona Arlete que todo mundo conhecia aqui no bairro e isso facilitava a relação com as crianças e adolescentes da época.


Jornal Crimeia – O teu trabalho era muito progressivo para a época. Buscava a liberdade, questionava conceitos. Vocês ensaiavam na sua casa em frente a Praça Vicente Sanches. Havia conflito por seu pai ser militar, por exemplo?


Arlene Rocha – Não, não tinha conflito não. A minha irmã que está aqui (Tânia), sofreu muito mais a repressão por ser mais velha do que eu. Quando comecei o trabalho do Sandança, no início dos anos oitenta, a gente estava saindo da Ditadura Militar, era um período de busca pela liberdade, o caminho estava livre para a gente voar. Talvez até não entendessem o que estava acontecendo para poder reprimir. Além disso, os meus pais eram artistas. O meu pai era músico, tocava saxofone, guitarra, era um grande músico. Em Belo Horizonte ele regia a banda da Polícia Militar, quando quebrou o queixo e teve que parar de tocar. Minha mãe adora música clássica. Como a gente fazia arte então era bom pra eles. Eles adoravam, iam nos espetáculos.


Jornal Crimeia - Como surgiu a ideia de montar o Sandança?


Arlene Rocha – Na época, na década de 80, a gente era ligado ao PT, o Partido dos Trabalhadores, que estava começando a fazer a sua história. Era um partido puro também como a gente, hoje não sei como está já que moro há bastante tempo na Europa. Eu era uma pessoa que sempre gostava muito da cultura popular. Então procurei as camadas populares do bairro para fazer um trabalho de arte. Eu gosto muito desta vida, desta raça que tem as pessoas mais pobres, coisa que os burgueses normalmente não tem. Não sou muito ligada ao balé, não me convidem para ver este tipo de espetáculo. Contemporâneo também não vou mais. Pode ser muito bom e pode ser muito chato também. Agora a cultura popular de qualquer país é prazerosa: dança indiana, africana, a cultura popular do Recife que eu gosto muito. Não tem como ser monótono. Tem força, tem vida típica da cultura popular. Eu sempre gostei da cultura popular, acho que é por isso que eu procurei pessoas que não tinham acesso a cultura e, com muita garra, montamos o Grupo Sandança de Arte Popular aqui no Crimeia.


Jornal Crimeia – O grupo era formado por muitas crianças e adolescentes, de 9 a 17 anos. Como conseguia a liberação para as viagens aos vários municípios que o grupo apresentou?


Arlene Rocha – As pessoas se conheciam, chamavam outras, conversavam com os pais, era tudo muito espontâneo. Na época existia esta relação de confiança. Acredito que hoje não seria possível. As relações não são as mesmas. Todas as crianças se conheciam, as famílias se conheciam. Eu visitava a casa delas, elas iam à minha casa. Eu era uma pessoa do bairro. Eu era como elas, com uma estrutura melhor de vida.


Jornal Crimeia – Que espetáculos você destacaria?


Arlene Rocha – Ah, fizemos muitas coreografias e espetáculos. Era o tempo do fim da Ditadura Militar, do nascimento do PT. Fizemos muitas apresentações ligadas a manifestações políticas, em bares, nas ruas, na Praça Cívica, teatros, municípios. Não era só o pessoal do Sandança e do Crimeia. Os artistas de Goiânia, que participavam do movimento de teatro amador da época, também se apresentavam com a gente. O movimento cultural em Goiânia estava em plena ebulição. Tinha movimentos alternativos em vários bairros. A gente participava destes eventos na Federação de Teatro, associações de bairros ligadas ao PT. Era assim que acontecia. Em Gurupi, por exemplo, quando a gente foi era o pessoal do PT que também fazia teatro amador, O Donizete Nogueira, que é dirigente do PT no Tocantins era um dos líderes do movimento. Fomos a Gurupi, Porto Nacional no Tocantins e em vários municípios de Goiânia. O Aguinaldo (Guido), que hoje é um ator conhecido em Goiânia, antes de ir para São Paulo e Rio de Janeiro, participou do Sandança. A Charlene Brito, que hoje é atriz no Tocantins, também. O irmão dela, Hélio Brito, é cineasta. Você é jornalista e Produtor cultural. Então o Sandança foi uma história de amigos como ocorreu na MPB, com os Beatles, etc. O Sandança então foi um grupo de amigos que começou com a gente no Crimelão, passamos pelo PT e fomos conhecendo gente na cidade. É o processo normal das coisas em todo o mundo.


Jornal Crimeia – O que representou esta experiência para você?


Arlene Rocha – Teve o gosto do início, da juventude.

Foi uma experiência muito linda, um momento muito poético da minha vida que está guardado para sempre dentro do meu coração. Na verdade, até hoje eu faço a mesma coisa. Eu ainda sou bailarina, coreógrafa, e continuo trabalhando com a cultura popular. Já trabalhei com muitos bailarinos do Brasil inteiro. Estou sempre recomeçando. Estava em Bruxelas na Bélgica, hoje estou na França fazendo uma nova história. O Sandança foi um capítulo importante da minha história cultural.

Jornal Crimeia - Quem você lembra desta época do Sandança?


Arlene Rocha - Sou péssima para lembrar nomes. (Luiz Fafau ajuda). Virgínia, Charlene, Rose Cristina. Muita gente passou pela Sandança. Dizem que a Cristina está em Bruxelas. Eu nunca vi. A gente quando tem um perfil público é fácil de encontrar quando não tem fica difícil, as pessoas sem este perfil desaparecem na multidão. Daquelas pessoas da época quem continuou fazendo arte foi a Charlene, o Guido, Urias, você outros seguiram diversas profissões.


Luiz Fafau – O Sandança extrapolou o universo do Criméia Leste quando a Arlene montou a estrutura da Cafuné no centro de Goiânia, ou seja, a Arlene tem uma característica empreendedora. Ela montou uma estrutura física que virou uma casa dos artistas de Goiânia na época, virou uma referência cultural para a cidade.

Arlene Rocha – Isto é muito importante. Para chegar a ter essa repercussão na época na cidade eu tive muito apoio. A minha mãe me ajudou muito, apoiando as minhas ações para que pudesse executar meus projetos. A minha mãe era empreendedora e nós todos aprendemos isso com ela. O Sandança começou aqui no Crimeia, mas a Cafuné, o espaço no centro de Goiânia, era uma extensão do Sandança e, como era no centro, era acessível a todo mundo. A dança era elitista e a gente era um grupo maluco, diferente e espontâneo que trabalhava com dança popular. O pessoal de dança, até hoje é muito burguês em todo o mundo. O Sandança misturava dança e teatro. Nós não tínhamos limites na época, queríamos experimentar. E isso atraia muita gente. A imprensa, na época, era muito gentil com a gente. Em qualquer lugar que fosse a apresentação havia cobertura, mesmo que fosse na rua. Apesar de sermos amadores atraíamos a atenção da imprensa. Estou aqui há 30 dias e estou chocado com a invasão da cultura sertaneja, é horrível esta dominação, prefiro a cultura popular do Pernambuco que valoriza as diferenças.


Jornal Crimeia – Voltando para o Criméia. Me lembro que você ensaiava o Sandança no terraço da sua casa onde é hoje a Ferragista Brasil e o consultório odontológico do Doutor Agnaldo Burjack. Gostaríamos que você falasse um pouco mais dessa sua relação com o Criméia.


Arlene Rocha – É difícil falar do que vivi aqui na época, tendo vivido em tantos lugares posteriormente. Eu acho que as pessoas daqui têm que pensar não só aqui. É preciso perceber que o mundo é grande pra caramba e que hoje, através da Internet, a gente está em conexão com o mundo todo. Aqui é um bairro como qualquer outro do mundo. É preciso interagir aqui e no mundo, abrir a cabeça. Eu odeio bairrismo, odeio fronteiras.


Luiz Fafau - Eu queria tocar em um assunto importante. Para mim a Arlene, com o Sandança, desempenhou um papel importante para as crianças e adolescentes do Crimeia na época, o de plantar, cultivar o sonho: o sonho de uma criança pobre em um bairro também carente de tudo na época. Eu me lembro da Dione dizer, aos 17 anos, após uma apresentação do Sandança no Teatro Goiânia, que teria vivido o dia mais feliz da vida dela.


Arlene Rocha – Quando você começa a fazer arte, é porta aberta ao mundo. Você faz arte porque quer se conectar com o universo. Você não quer saber do que está ocorrendo só no seu bairro. Hoje um bairro já não é mais isolado. O mundo hoje é todo misturado. Em qualquer lugar tem gente de todo lugar. Isto é bom, faz crescer a cultura.


Jornal Crimeia - Como já é tradição no Jornal Crimeia, dê aí o seu depoimento final.

Arlene Rocha - Me lembro quando a gente ia para a escola uniformizado. As ruas cheias de crianças indo a pé juntas e voltando juntas também. Isto não era só no Criméia, ocorria em vários bairros, era uma particularidade de um tempo, de uma geração. É uma imagem muito bonita. As crianças pequenas andando tranquilas. Hoje isso não ocorre mais. Não tinha perigo nas ruas, não tinha a velocidade dos carros, a violência. (O depoimento vira um bate-papo gostoso e nostálgico de um romântico Crimeia há mais de trinta anos atrás, nos anos 70 e 80). Me lembro das festinhas abertas a todos que chegassem, dos ranchões que eram realizados pelos grupos de jovens da Igreja Católica. Das peças de teatro ginasiais. Do Crimelão. Das turmas dos bairros que invadiam o Criméia. Não existiam praticamente casas com muros. Era bom, era diferente. Ninguém era convidado para as festas, mas todo mundo ficava sabendo. O Crimeia era um pouco como fazenda do Interior.



Apresentação:


“Este projeto foi contemplado pelo Edital de Arte nos Pontos de Cultura Aldir Blanc - Concurso nº 02/2021-SECULT-GOIÁS – Secretaria de Cultura - Governo Federal"





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